A CLÍNICA NOS MOVIMENTOS SOCIAIS - notícias do SEDES

O Núcleo Acesso – originalmente um grupo vinculado à Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae e pautado pelo estudo, pesquisa e intervenção na clínica da adoção – expande seu dispositivo para o acesso à psicanálise dos militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), através do atendimento às crianças, seus familiares e responsáveis. A parceria, firmada em 2019, é mediada pelo Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT), fundado em fevereiro deste mesmo ano para garantir o atendimento clínico aos integrantes de diversos movimentos sociais e outros grupos e organizações não governamentais que vivem situações de exclusão, desterritorialização e violências decorrentes do desamparo resultante da situação de abandono pelo Estado. Além dos atendimentos clínicos, o NETT organiza-se como um núcleo de pesquisa e estudos sobre as questões políticas e sua implicação da clínica psicanalítica.

O evento A clínica nos movimentos sociais foi um momento de encontro e reflexão em torno de questões surgidas no âmbito deste trabalho, visando a construção desta rede. O evento contou com a participação dos outros parceiros do NETT no atendimento ao MTST: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), representado pelo professor José Moura Gonçalves Filho, docente coordenador da parceria IP/USP-NETT; Cris Andrada, docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), parceira do NETT; Patricia Beretta, psicanalista coordenadora da parceria do Instituto Gerar-NETT; Cristiane Izumi Nakagawa, psicanalista, coordenadora do NETT; Guilherme Boulos, professor, escritor, coordenador do MTST e Marcia Porto Ferreira, psicanalista, coordenadora do Núcleo Acesso e da parceria Núcleo Acesso-NETT. No auditório do Instituto Sedes Sapientiae, em torno de 60 pessoas participaram do evento, às quais se somaram mais de 5000 outras que acompanharam, à distância, a discussão ali realizada. A noite foi encerrada com a participação do poeta e compositor Jean Garfunkel.

Nossa primeira convidada, Cristiane Izumi Nakagawa, representou o NETT, criado para promover pesquisa e atendimento clínico psicanalítico, psiquiátrico e atividades terapêuticas gratuitas a pessoas em situação de vulnerabilidade psíquica e com restrito acesso a tais serviços. Cristiane nos contou como foi a formação do NETT, tendo como inspiração o trabalho de acompanhamento psicológico realizado na ocupação Vila Nova Palestina, do MTST, que surgiu no primeiro semestre de 2017. O atual cenário sociopolítico brasileiro e o crescimento da demanda pelos serviços oferecidos pela equipe nessa frente de trabalho tornaram pertinente, se não fundamental, a criação de um núcleo que agregasse profissionais do campo da saúde mental em torno de uma rede interinstitucional de parcerias com instituições de formação, assistenciais e universitárias. Os profissionais do NETT, nessa primeira aproximação com o MTST, em sua busca de uma clínica que se constituísse como o oposto de uma ocupação forasteira e como um espaço de tolerância e de troca, puderam se tornar mais parecidos com as pessoas de lá a partir do que a linguagem colocou em movimento. Viram-se não apenas vivenciando o auxílio da escuta psicanalítica, mas também a experiência de inclusão como psicanalistas e como cidadãos. Era preciso, então, ampliar a equipe de psicanalistas, psicólogos clínicos e psiquiatras, buscando responder à demanda proveniente tanto do MTST quanto dos diversos grupos e movimentos sociais. Hoje são atendidas pessoas que vivem em comunidades nas periferias de São Paulo, migrantes, imigrantes e refugiados, mulheres em situação de violência e prostituição, dentre outros grupos.

O Núcleo Acesso é então uma das parcerias articuladas pelo NETT até o momento. Ainda no Instituto Sedes Sapientiae, foi realizada uma parceria com o Projeto Ponte, que ficou responsável pelo atendimento de migrantes e imigrantes. Outros atuais parceiros do NETT são a PUC/SP; o Instituto Gerar, que, por meio do projeto Casa Aberta, ficou responsável pelo atendimento a gestantes, mães e pais no período puerperal; e o IP/USP, que recebe encaminhamentos do público em geral. Cristiane conta ainda que, com a ampliação da equipe do NETT e essas parcerias, surgiu também uma demanda de formação e supervisão para uma clínica psicanalítica social e política, não só para os profissionais já vinculados direta ou indiretamente ao NETT, mas também por parte de outros interessados em integrar a rede. O NETT, contando com o apoio dos responsáveis pelas parcerias e de outros psicanalistas e profissionais da psicologia social e das ciências políticas, passará então a oferecer grupos de estudos, palestras e supervisões para formação dos profissionais que atuam no serviço.

José Moura Gonçalves Filho apresentou as bases teóricas e clínicas que mobilizaram os militantes a partir do estudo conjugado da formação política e a formação em psicanálise. Refletiu acerca das necessidades de escuta psicológica de transferência por parte dos oprimidos. Trata-se, segundo ele, no caso dos oprimidos, de uma necessidade de “dividir, compreender, superar as angústias, sem a desmoralização de quem as sofre, que surgem a partir das humilhações ligadas à dominação, ao antagonismo de classe e raça”. Os antagonismos sociais promovem uma relação entre soberbos e envergonhados, patrões e subordinados, governantes e governados que não é indiferente ao sujeito. Moura ressaltou o fato de que “a dominação conta entre os maiores fatores de adoecimento mental, espiritual e moral, podendo desenvolver-se como adoecimento físico e, até mesmo, como morte”, além de contar como “uma dos mais antigas e violentas manifestações do ódio sentido entre grupos”. Para ele, a necessidade de transferência dos oprimidos precisa encontrar junto aos psicólogos, sejam quais forem as suas origens de classe, um engajamento feito de “duradoura proximidade, amizade, trabalho, estudo e ações públicas coletivamente organizadas”. O engajamento foi apresentado, então, como condição para a descoberta de que a pobreza pode se tornar insuportável quando atinge o nível máximo da privação e de que, quando sentida sob um signo de desprezo e desigualdade, é um fenômeno simbólico de grande potencialidade traumática. O enigma da razão desta desigualdade, quando colocado isoladamente sobre as pessoas, pode promover o desespero e suas consequências: morte e crime. De um modo inverso, quando a pobreza é signo ou enigma coletivamente colocado em parcerias pode potencializar o ânimo para sustentar uma vida entusiasmada. Além disso, destacou que o engajamento contribui para a superação de dois vícios dos psicólogos, o psicologismo e o infantilismo: o psicologismo como ignorância do caráter social da humilhação vivida em grupo antes de se tornar uma experiência individual, que alterna o sentido da compreensão da angústia numa relação de transferência, e a situação infantilizadora que pode ser gerada na situação transferencial em função da natureza das questões abordadas quando se exclui o contexto histórico-político do sujeito na escuta.

A terceira convidada foi Cris Andrada, que fez uma importante fala sobre o movimento da economia solidária, que reúne e amalgama em uma composição original lutas anti-hegemônicas diversas e variadas formas populares e tradicionais de trabalho, agregando coletivos de trabalhadores em diferentes locais e setores de acordo com princípios da igualdade e participação direta e democrática. Contou como suas pesquisas etnográficas no campo revelam experiências profundamente transformadoras para o trabalhador e a viabilidade e pertinência de se adaptar o trabalho à pessoa e não o contrário, como é tão frequente no mundo capitalista. Nessas experiências, acompanhou o importante desenvolvimento nesses trabalhadores de habilidades políticas de ouvir, falar e negociar em diferentes posições e trouxe relatos de como as pessoas envolvidas nesses grupos se vêem frente ao sonho louco de ter o controle de todo o processo de produção. Apontou ainda a necessidade de um trabalho clínico que leve em conta as violências e os massacres cotidianos a que estão submetidas essas pessoas e, por outro lado, os conhecimentos que elas têm e que não temos. São, segundo ela, pessoas fortes e solidárias e a solidariedade é profundamente terapêutica. Assim, é preciso que o profissional engajado nessa clínica se proponha a servir à igualdade em um campo desigual e a se inserir nessa ecologia de saberes, reconhecendo que se trata de pessoas vinculadas a grupos muito apegados à autonomia e à participação direta e pouco interessados em uma postura ilustrada de estrangeiros.

Patricia Beretta, representando o Instituto Gerar, trouxe reflexões em torno do tema da gravidez e da maternidade na adolescência. Considerando a crise social da maior parte da juventude e sua falta de perspectiva acadêmica e profissional, bem como a carência de direitos sociais básicos como moradia e saúde, aponta como pais e filhos são colocados em uma espécie de círculo vicioso no qual o projeto pessoal de ter filhos assume outro lugar. A vulnerabilidade social dos pais adolescentes faz com que haja, inclusive, casos de gestações frutos de abuso sexual ou estupro, ou outros em que a perda do poder familiar penaliza mais uma vez o sujeito em negligência social, acusado ele mesmo de ser negligente. Faz, assim, um apelo para que lembremos que a psicanálise não deve ter como norte normalizar ou patologizar os sujeitos, mas considerar a singularidade de cada um em seu contexto social e procurar desfazer a identificação com o lugar de pária social em que foi colocado. A psicanálise, em seu entendimento, atua no campo de permanente tensão entre indivíduo e coletividade e o projeto Casa Aberta tem se dedicado a uma compreensão da realidade social dos sujeitos tendo o território como noção fundamental. Faz contundentes considerações em torno dessa noção, tendo em vista que o Instituto Gerar está localizado na Vila Madalena, em região distante de onde vivem essas famílias e repleta de imóveis de alto padrão. Aponta para a necessidade de considerar, portanto, como se constroem as questões da moradia naquela família e conta como os atendimentos realizados vêm mostrando que, além do direito à moradia, há também uma falta de direito de história familiar. Por fim, defende que se reflita sobre os espaços de circulação da psicanálise na cidade e como estamos, em geral, cidadãos vulneráveis de um lado e psicanalistas de outro.

Marcia Porto Ferreira retomou a história e a especificidade do Núcleo Acesso como um projeto ético, político e clínico que vem sendo realizado há 23 anos com crianças em acolhimento institucional ou que foram adotadas e que perderam o contato com suas famílias de origem, em sua grande maioria, de forma brutal. O Núcleo vem trabalhando com as crianças e famílias do MTST na mesma perspectiva. A coordenadora ressalta que a clínica, para esta equipe, não é considerada como psicoterapia, mas resulta de múltiplas “intervenções sociais que contribuam para a busca de saídas para situações enclausurantes e assujeitadoras”. Portanto, é uma clínica que exige uma contínua revisão crítica sobre os modos de produção de subjetividade. A noção de dispositivo é tomada emprestada de Foucault para se pensar a visibilidade das forças de poderes e saberes que atravessam determinada condição em uma clínica que escancara o desamparo. Assim, o dispositivo foi criado para que não sejam reproduzidas a violência e o desamparo próprio das situações dos sujeitos atendidos. Marcia ressaltou também a inspiração em Maud Mannoni com a noção de instituição explodida, onde a presença do estrangeiro, do estranhamento e dos dispositivos abertos é fundamental. Trata-se de uma clínica extensa que, além de promover atendimentos psicoterápicos, se dispõe a produzir uma rede de proteção e cuidados à criança e ao adolescente, em composição e implicação com redes já existentes.

Guilherme Boulos, coordenador do MTST, relatou, por fim, que sua aproximação com a psicanálise se deu, justamente, num campo extra muro, a partir de uma ação política que acompanhou na Argentina em 2001 no movimento dos piqueteiros: a iniciativa de uma série de psicanalistas que se dispuseram a montar um setting em bairro da periferia de Buenos Aires com pessoas que estavam vivendo a experiência de humilhação social e, ao mesmo tempo, engajadas na luta política. Boulos retomou o seu trabalho de mestrado realizado no Instituto de Psiquiatria da USP com a pesquisa dos índices de sofrimento mental – especificamente a depressão, nos militantes antes e depois da entrada no MTST. Ele apresentou alguns relatos de militantes que sintetizam a potência dos vínculos comunitários que foram perdidos com o processo de urbanização e que promovem uma exclusão em massa nas periferias. Ele enfatiza que o despertar para a vida política e comunitária possui um enorme potencial de saúde quando as pessoas não se percebem mais sozinhas. A ocupação promove efeitos terapêuticos a partir dos vínculos comunitários, ampliando o repertório afetivo e de relacionamento dos sujeitos. Para ele, estes espaços de escuta que estão sendo articulados são decisivos na vida destes sujeitos, embora reconheça os desafios apresentados para o estabelecimento e a conquista da confiança nos profissionais envolvidos.

De fato, embora seja recente, não há dúvidas de que a clínica que vem se ampliando no Núcleo Acesso a partir desta parceria com o NETT tem promovido profundas discussões na equipe e lançado seu olhar para temas e questões muito semelhantes aos apontados pelos participantes do evento. Muitas reflexões vêm surgindo em torno das noções de território, de pertencimento e de acesso e acreditamos que esses espaços de escuta e de discussão clínica e política por eles potencializados seguirão sendo ricos e decisivos – não só para as pessoas atendidas pela rede, mas também por todos os psicanalistas envolvidos. Ao trabalho!

[i] Psicanalista, professora do Departamento de Psicanálise com Criança do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora da equipe clínica Acesso – MTST.

[ii] Psicanalista do Núcleo Acesso, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.